terça-feira, 19 de maio de 2009
Bico Torto
Ao me mudar para Higienópolis, escolhi um novo endereço para cortar o cabelo. Um amigo me indicou o Mário, que trabalha em um shopping. Animado, o rapaz gosta de conversar o tempo todo. Entre uma tesourada e outra, me falou de sua paixão por pássaros.
— São pinturas vivas!
No início, não me interessei muito pelo assunto. Meu pai criava canários. Passei minha infância ajudando a distribuir alpiste e água pelas gaiolas. Embora o canto e o colorido dos canários fossem incríveis, eu me rebelava contra a obrigação.
— Hum, hum — fiz, educadamente, quando o cabeleireiro entrou no tema.
Animado, o rapaz contou:
— Criei uma arara vermelha no apartamento!
Assustei-me.
— Não é pássaro protegido pelo Ibama?
— Era nascida em cativeiro.
Explicou que a criação de animais em cativeiro ajuda a salvá-los da extinção.
— A arara se comportava como um bichinho de estimação!
Segundo o rapaz, ela pousava em seu braço, comia em sua mão. Reconhecia sua aproximação de longe. Tanta fidelidade provocou uma crise no prédio. Se o dono chegava de noite, a ave soltava gritos de alerta que acordavam a vizinhança. Quem já ouviu sabe bem como é. Houve uma revolta no condomínio. Mário e a mulher cobriram a gaiola, para ver se a arara dormia. Inútil. Mal ele se aproximava da porta, movida pelo sexto sentido comum aos animais, a ave gritava. Fosse de dia ou de noite. Pior, de madrugada. A arara tornou-se um constrangimento.
— Não é para ser criada em apartamento! — rugiu o síndico.
Na época, Mário montava uma pequena escola de primeiro grau em sociedade. Resolveu construir um viveiro de pássaros para os alunos. Só a barulhenta seria pouco. Saiu em busca de outras aves. Descobriu uma loja especializada em espécimes raros criados em cativeiro. O dono prontificou-se a arrumar tipos capazes de viver em harmonia. E propôs, como presente:
— Você não quer ficar com esta ararinha que nasceu com um problema?
O filhote tinha o bico torto, tanto que era incapaz de se alimentar. Só podia ser nutrido através de uma seringa. O oferecimento soou como uma coincidência:
— A proposta da minha escola é justamente a integração da criança deficiente. Tem tudo a ver! — agradeceu Mário.
Levou o filhote para seu apartamento. Passou um bom tempo alimentando-o com papinhas e, como sobremesa, grãos. Aos poucos diminuiu o pastoso e aumentou os sólidos. A ararinha aprendeu a se alimentar sozinha, apesar do bico torto. Só então a levou para o viveiro.
A quem diz que o pássaro estaria muito melhor solto na natureza, o rapaz responde com um argumento:
— Não a arara de bico torto. Quando algum filhote nasce com problema, os pais o atiram do ninho.
Os alunos elegeram a arara como mascote. Ficam felizes ao vê-la no viveiro, convivendo com os outros pássaros, soltando gritos de alerta, comendo com a cabeça curva. Adaptou-se tão bem que… surpresa! Acasalou-se com um macho da espécie e já teve filhotinhos. Enquanto eles piam no ninho, ela os alimenta delicadamente com o bico torto, que se tornou tão útil quanto qualquer outro.
Em uma cidade grande, violenta e cheia de problemas como São Paulo, há o risco de se ficar com o coração torto. E só olhar para o lado ruim de tudo. Sempre me surpreendo. Basta estar de ouvidos abertos para, seja em um corte de cabelo, seja no balcão da padaria, descobrir uma história emocionante. Como a da arara de bico torto que hoje encanta as crianças de uma escolinha da Zona Sul.
Fonte: Crônica de Walcyr Carrasco, Veja São Paulo de 22 de março de 2009.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário